A vida como ela é: Lourdes Castro na Coleção de Serralves deveria ter inaugurado a 20 de março deste ano de 2020, dia que marca o início da primavera – coincidência que muito agradou à artista, compreensivelmente se pensarmos na quantidade de obras que fez com flores…
Poucos dias antes da inauguração, exatamente quando estava previsto o arranque da instalação das obras, o Museu de Serralves fechou as suas portas. Mas a exposição, embora adiada, continuou bem presente nos meus dias. Impossibilitado de pensar na galeria da exposição a melhor forma de fazer as obras falarem umas com as outras (e connosco, claro), continuei ainda assim o diálogo com a Lourdes iniciado no início da fase de conceção da exposição, para esclarecer dúvidas relativas a títulos de trabalhos e escolher a imagem para os materiais de divulgação da mostra. Estas conversas passaram-se ao telefone – o meio que permite comunicar mais rapidamente com alguém que nunca quis ter computador e continua a privilegiar as cartas como a melhor forma de chegar a quem está longe. Depois de tentarmos outros horários, a Lourdes confessou-me que as quatro da tarde eram para ela a melhor hora para conversar. Começámos a falar sempre às quatro, primeiro sem demasiada regularidade e depois diariamente. Hoje, falamos todos os dias das quatro às cinco. Quando começámos este "diálogo perpétuo” não podia imaginar que o telefone do Museu seria substituído pelo telemóvel, que em vez de estar sentado na minha cadeira de escritório no Museu estaria no sofá da minha sala de estar, ou que teria de lhe anunciar o adiamento da exposição; também não suspeitava que o convívio diário com a sua sabedoria, lucidez, serenidade e humor pudesse ser um antídoto para tempos tão incertos e potencialmente angustiantes como aqueles que vivemos. A sua reação ao adiamento da exposição sintetiza bem as suas referidas qualidades: "Pois, parece que a primavera vai ter de começar mais tarde… Além disso, o mundo pode ter descoberto agora a quarentena, mas eu, que não saio de casa há praticamente dois anos, posso dizer em primeira mão que essa experiência não tem de significar a renúncia a tudo!”.
Durante as muitas horas em que conversamos, abordamos assuntos tão diferentes quanto a sua passagem pela Escola de Belas-Artes de Lisboa (que ambos frequentámos, com cerca de 45 anos de intervalo), a sua vida em Paris (quase aos 90 anos, Lourdes Castro conserva uma memória prodigiosa, que lhe permite contar ao detalhe as suas aventuras parisienses, enumerar as muitas pessoas que conheceu e em que circunstâncias – "afinal de contas, não estávamos em Paris para ficar em casa!”), a arte – a sua e a dos outros –, a forma como sempre se recusou a gerir uma carreira que nunca quis ter ("as coisas aconteceram-me sem as ter procurado… mas sempre acreditei em mim!”), a importância do encontro com determinadas pessoas ("ninguém escolhe o sítio onde nasceu, ou os pais que teve”) e com determinados livros (já lá vamos).
Referi-me há pouco aos telefonemas com Lourdes Castro como "antídoto para angústias”. Acrescentaria "para medos”. Explico porquê: a viver sozinha e geograficamente isolada (circunstância que foi aceite e procurada), a todos quantos lhe perguntam se não sente medo, ela responde: "Medo? Não sei o que é o medo. Para senti-lo precisava acreditar, e não acredito, que estou separada das coisas – é que só quem acredita que as coisas estão separadas de nós as pode ver como ameaçadoras. Por isso mesmo, nunca me sinto sozinha… as árvores do meu jardim fazem-me muita companhia”.
Esta forma de pensar, que explica a serenidade de quem está inteiramente em tudo o que faz e diz, pode relacionar-se com o seu interesse pelo pensamento oriental – quando referia os assuntos de que falamos, esqueci-me das constantes referências ao Japão (cuja cultura simultaneamente atrai e repele a Lourdes, com cerimónias muito belas, simples e justas, é certo, mas que podem ao mesmo tempo ser demasiado rígidas – "O Japão é a Alemanha do Oriente!”), ao deslumbre e à beleza dos haikus, aos livros que leu na língua original quando estudava no Colégio Alemão do Funchal, em particular um livro que me parece de tal forma importante para a sua formação como pessoa e como artista que decidi relê-lo na altura em que escrevia o texto do roteiro que acompanhará a sua exposição: Zen e a Arte do Tiro com Arco, escrito em 1948 por Eugen Herrigel, professor alemão que, entre 1924 e 1929, ensinou filosofia no Japão. A artista, que, como referido, o leu em alemão numa fase muito precoce, descreve-o da seguinte forma: "Às vezes são boias de salvação. Quando o Ocidente já não estava a responder ao que se perguntava, foi muita gente ao Oriente. E voltou; como o senhor Herrigel, que esteve lá, estudou e aprendeu o japonês. Essa troca vem responder a coisas, como a religião: são respostas que a um certo momento batem certo, que nos aliviam, que nos ajudam”1 . Uma das melhores sínteses do livro, que descreve a tentativa de compreender o Zen a partir da arte do tiro com arco, foi curiosamente ou não, escrita por um amigo de Lourdes Castro, José Manuel dos Santos: "Vivida por nós como divisão, erro, conflito, discórdia ou alucinação, a relação entre corpo e mente, matéria e espírito, ser e devir, consciente e inconsciente, razão e sentimento, ideal e real, visível e invisível, palavra e silêncio, identidade e alteridade, abstracto e concreto, universal e particular, vida e morte figura aqui como aliança, acordo, concórdia, conjura, fusão e hipóstase”2 .
Enquanto esperamos pela abertura da exposição, proponho-me escrever "Cartas à Lourdes: das 4 às 5”, que em breve estarão disponíveis numa publicação impressa e de aqui se dá a conhecer uma pequena parte, na expectativa de que transformem este período de espera da sua exposição num momento de partilha da sua arte e da sua vida. e despertem a curiosidade dos futuros visitantes Acompanhá-las-ão textos sobre a sua obra – especificamente sobre os seus trabalhos integrados na Coleção de Serralves – e sobre os seus livros de artista incorporados na Coleção de Livros e Edições de Artista da Fundação de Serralves). Hoje, como preparação para esta viagem, podemos descobrir ou redescobrir uma ópera que Lourdes Castro ouve diariamente: A Flauta Mágica, de Mozart.
Ricardo Nicolau, 30 de março de 2020
1. Ver Óscar Faria, "Lourdes Castro: ‘A minha pintura é esta: o viver, o estar cá’.” Entrevista a Lourdes Castro, Público, Ípsilon supl, 3 de março de 2010.
2. Ver José Manuel dos Santos, "O Tiro”, Expresso, 29 de novembro de 2007.
I. MAR QUE O VENTO NÃO MEXE:
II. É SERVIDO?
III. DINAMARCA
IV. NADA PARA ENSINAR, TUDO PARA APRENDER
VI. A ESCOLHA DO CARTEIRO
VIII. 4 x 4 x 4 x 4
IX. CHOPIN EM POLACO
X. A VERDADEIRA EXPERIMENTAÇÃO É AMADORA E CASEIRA
XI. ECONOMIA A BANHOS